19 agosto, 2007

ENTRE A CRUZ E A ESPADA - III (FINAL)

Com os estudos já concluídos , Pedro estava apto a tentar a vaga na Academia Militar. A Cavalaria era a sua meta e , naqueles anos, o Exército precisava de voluntários. Algo de diferene estava acontecendo no interior da Bahia; um monarquista fanático planejava derrubar a República, ouvia-se na capital. Passando pelos exames iniciais, o jovem capixaba destacou-se nas entrevistas individuais. Cara-a-cara com os mais austeros oficiais, manteve-se firme e seguro em suas respostas; demonstrou largo conhecimento em História Geral e Brasileira, por conta do antigo mascate e do auxílio de Firmino, que lhe contou de tudo que vira e ouvira sobre a Guerra do Paraguai e tantos outros episódios recentes. As habilidades físicas e a destreza na equitação, ainda que tosca, garantiram-lhe, por fim, a condição de Cadete.
Dois anos depois Pedro era Alferes de Cavalaria! Com as suas botas de um preto espelhado, suas esporas prateadas, comandava orgulhoso o Primeiro Pelotão de Reconhecimento. Sobre o dorso do castanho IDEALISTA, era só orgulho e saudades da família, que há anos não via nem tinha notícias. Sabia, entretanto, que três tropas haviam sido derrotadas na tal Canudos, uma fortaleza de revoltosos comandados por Conselheiro. Pedro estava relacionado para a quarta investida contra Canudos. O número de mortos beirava os dez mil, diziam, mas finalmente entrarei em combate, pensava o jovem oficial.
Sem que seus superiores pudessem compreender, o veterano Sargento Firmino foi voluntário para Canudos e ele estaria no ataque derradeiro; na verdade aquela incumbência lhe foi dada por sua mãe, Maria.
Poucos meses após a partida de Pedro, Vó Maria morreu. Com um semblante sereno, partiu para um outro plano, como se soubesse que ainda tinha uma missão a cumprir. Nos últimos dias ela revelou ao seu caçula que andava recebendo visitas do finado Chico; dizia ainda que eles tinham que preparar o terreno para uma semeadura muito importante.
Derrotados pelos impostos da República, Antônio e Neuci partiram para uma nova empreitada. Rumores davam conta de que , no interior da Bahia, o Bom Jesus acolhia ex-escravos, pobres, desgarrados e os arruinados pela seca ou pela nova política. Lá viviam em comunidade, ajudando uns aos outros. O Professor Antônio Maciel, ou Antônio Conselheiro, era o líder de uma nova sociedade de iguais, que não aceitava o modo de vida republicano, principalmente no que se referia aos impostos. Com seu manto surrado, barbas e cabelos longos, de cajado em punho, Conselheiro era uma figura quase bíblica para aquele povo e, em verdade, não oferecia perigo ou risco; porém , da Bahia ao Rio de Janeiro a notícia ganhou vulto e o mito virou monstro.
Primeiro foi-se FERRADURA, dias depois, ZAZÁ. Sucumbiram à seca e à longa jornada. Talvez a idade e a sobrecarga de trabalho, naqueles últimos anos, tenham abreviado as partidas dos companheiros e confidentes do menino Pedro. Dos pais do tenente, e eles nem sabiam que o filho havia conseguido seu intento, nunca mais se teve notícias.
No cerco final a Canudos estavam tropas de dezessete estados brasileiros. Voluntário para tudo e com habilidades ímpares, o Tenente Pedro partiu para o reconhecimento noturno. Ao seu lado estavam o experiente Sargento Firmino e o leal Soldado Heitor. Cabia-lhes aproximarem-se ao máximo da fortaleza inimiga e alimentar de dados o escalão superior. O dias seguintes seriam decisivos, mas aquela madrugada seria a mais longa de todas.
Em noite sem luar, os últimos metros antes da muralha foram aterrorizantes. Corpos semi-sepulcros e outros tantos empilhados, por enterrar, nem de longe mostravam perigosos rebeldes ou soldados inimigos. Eram velhos , mulheres, crianças e matutos de todo tipo, figuras que Pedro passara toda a vida convivendo; gente comum, gente de bem, pensava . Por uma fenda dos muros viram pessoas simples e muito assustadas; facões , alguns poucos bacamartes e trabucos armavam homens e mulheres maltrapilhos. Um velho homem de voz rouca , de cajado nas mãos, fazia uma oração. Como que de comum acordo, os três militares se viram em lágimas. Aturdidos com a cena a que assistiam, sentiram até vergonha de participar daquele combate. Ao Tenente cabia decidir. Pela última vez nessa vida entre a cruz e a espada, lembrou-se das palavras de fé cristã de Vó Maria, dos seus ideais de soldado, dos ensinamentos de Cervantes e, por fim, recorreu à sua consciência.
- Vou desertar, não vou participar disso! Não vou sujar minhas mãos com sangue dessa gente humilde, o sangue da minha gente. Firmino! Heitor! Podem retornar para o acampamento e digam o que quizerem ao Comando.
- Vamos acompanhá-lo até o fim, tenente. Estamos sob suas ordens!
Em desenfreado galope, romperam a madrugada sertão a dentro. Sem saber dos dias ou das horas, sem destino, viram-se perdidos na caatinga. Heitor delirava de fome , sede e calor, recitando rezas do interior das Minas Gerais. Firmino pouco falava e se mantinha vigilante aos passos de Pedro. O tenente, ainda que perdido nos caminhos dos sertões, seguia firme na sua razão e na sua fé.
As primeiras baixas foram os cavalos. IDEALISTA foi o último a sucumbir, seu esqueleto iria se juntar a outros crânios naquele solo seco e sem vida. Em oração , Pedro despediu-se do leal companheiro de glórias e de longas cavalgadas. Seguiram caminhando e , em silêncio, Firmino ficou pelo caminho; mais adiante foi Heitor que pereceu. Não havia como perceber nada, não era posível nem mesmo pensar. A fome e a sede abalaram a mente de Pedro, enquanto o sol rasgava-lhe as entranhas como espadas incandescentes a lhe perfurar o corpo e a alma, mas ele continuava a caminhar.
Eram doze horas do quinto dia de suplício e o calor nunca havia sido tão forte. Como que por milagre, Pedro sentia-se, agora, revigorado. Seu corpo já não doía tanto, o sol apenas acariciava sua pele e a sede já não lhe incomodava, assim como a fome. Viu-se , finalmente, sozinho e soube que seu tio e o soldado Heitor já descansavam em paz...continuou caminhando. Um pouco a frente viu uma casa simples, de janelas azuis e paredes brancas. Estou salvo, pensou. No pasto ralo estavam FERRADURA e ZAZÁ. Pedro correu para os velhos amigos de infância e aos prantos, enquanto afagava os animais, viu três figuras na varanda. Chegou a sentir o cheiro do bolo de milho...era Vó Maria. Pedro correu apara abraçar a avó , mas não conseguiu; ajoelhou-se aos seus pés e não conseguia parar de chorar. Ao lado de Maria estava um jovem Soldado das Volantes Pernambucanas e, do outro , Firmino.
- Que lugar é este, vó? Quem é esse soldado?
- Aqui é o outro lado da vida, meu neto. Este aqui é seu avô Francisco, o vô Chico, que não te viu nascer.
- Como é possível?!
- Entra e repousa. Cuidaremos das tuas feridas. Você fez a escolha certa, mas temos uma última missão no plano terreno, uma missão de sofrimento e fé.
- Não entendo.....
- Pedro, voltaremos a nos encontrar em outra vida e não lembraremos disto aqui. Estaremos em um país distante, daqui a alguns anos; eu serei Emília, sua mãe. Chico será seu pai, para compensar a ausência de agora. Firmino, que te guardou em segurança, será seu irmão Edmund.
- Eu começo a entender , mas é difícil...
- Viveremos os horrores da guerra e das doenças, ficaremos frente-a-frente com a besta-humana, mas você seguirá firme na fé. Arrastará multidões e nunca tocará em armas. A cruz será teu escudo e a caridade a sua razão de viver. Teu nome será Karol, Karol Józef Wojtyla, e ficará escrito para sempre nos corações dos homens e mulheres de bem.






4 comentários:

Unknown disse...

Lindo, fiquei emocionada... excelente desfecho, muito criativo e terno... fico aguardando a próxima. Bjs!!!!

Kath disse...

Se não bastasse a bela história, ela se desenvolve na sua narrativa envolvente.
Muito bom mesmo! Não pare de escrever.

Kath disse...

Coé, desistiu?

Zumbi disse...

Nossa!!!!
Adorei!!!!
Envolvente... por mai q eu achasse o texto longo, o q normalmente me desanima( rsrs ), eu não conseguia parar de ler!!!
Como Sr consegue fazer isso?
Muuuito legal!